Aplicativos contact tracing e a violação à privacidade

CEINDI
5 min readJun 17, 2021

Pablo Martins Bernardi Coelho*

Fonte: Unsplash/Markus Winkler

As plataformas de monitoramento já são uma realidade para todos nós e vem se multiplicando pelo mundo sob a justificativa do combate a COVID-19. Por conta do significativo avanço das tecnologias de vigilância passamos a indagar se os direitos à privacidade e à proteção de dados dos indivíduos estão correndo o risco de não serem preservados, principalmente no mundo pós pandemia.

No início da pandemia da COVID-19 muitos países começaram a adotar aplicativos de contact tracing como forma de controlar e acompanhar a disseminação do vírus, utilizando o monitoramento da população através dos dados de celulares. Alguns países como a França, Islândia, Reino Unido e EUA adotaram de forma voluntária e outros como a China e a Turquia de forma obrigatória. Através do uso de dados de geolocalização ou Bluetooth, o usuário recebe avisos sempre que passar algum tempo perto de alguém contaminado com o vírus causador de doença respiratória e também saberá, em tese, se o local em que se encontra é livre do Coronavírus ou não. Desta forma, o usuário é informado se deve ficar em isolamento ou se pode transitar tranquilamente.

No atual cenário, apesar dessas tecnologias de rastreamento serem perfeitamente justificadas, há um receio quanto à utilização desses dados, pois pode ser pontecialmente sensível e ameaçar a privacidade dos indivíduos. Os aplicativos contact tracing contém dados pessoais dos usuários, inclusive por onde você andou e onde esteve em determinado período de tempo. A Organização Mundial de Saúde (OMS) alerta para o perigo do vazamento dos dados pessoais coletados e à exposição da privacidade dos usuários. Para a OMS é fundamental formatar tais aplicativos sob fundamentos de transparência da utilização dos dados, a anonimização e a minimização dos dados pessoais dos usuários, a segurança e o descarte depois da utilização para o fim predefinido.

Para termos uma ideia da extensão de tal problemática podemos citar as manifestações anti-racistas que ocorreram nos EUA em virtude, principalmente, do assassinato de George Floyd na cidade de Minneapolis. De acordo com o site norte-americano BGR, sob a alegação de combate à violência das manifestações, algumas cidades — incluindo Minneapolis — começaram a recorrer ao rastreamento do contact tracing para entender o perfil dos manifestantes, com quem eles estão associados, quais plataformas eles utilizam e o que estão defendendo.

Hoje sabemos que a divulgação desses dados apresenta perigos à privacidade e à proteção de dados, visto que falta transparência e conhecimento de como os dados pessoais coletados são utilizados, o que podem levar as consequências não assistidas que violam os direitos individuais e coletivos.

Pesquisa da Universidade de Illinois revela que a maioria dos aplicativos de rastreamento COVID-19 viola o direito à privacidade. Pesquisadores analisaram cerca de 50 aplicativos relacionados a COVID-19 disponíveis na loja Google Play para acesso aos dados pessoais dos usuários e proteção de privacidade. De acordo com esse estudo a maioria dos aplicativos móveis que rastreiam a disseminação da COVID-19 exige acesso aos dados pessoais dos usuários, porém, apenas alguns indicavam que os dados seriam anonimizados e protegidos. Os pesquisadores observaram que é desconcertante o fato de esses aplicativos coletarem e processarem continuamente dados altamente sensíveis e de identificação pessoal, sobre saúde, localização e identificadores como nome, idade, endereço de email e identificação do eleitor ou nacional de um usuário.

No Brasil, o governo de São Paulo implantou em abril de 2020 o Sistema de Monitoramento Inteligente (Simi) que visa identificar os locais com maiores concentrações de pessoas. O sistema é uma parceria do Estado com as operadoras de telefonia móvel, as quais fornecem os dados de geolocalização dos seus usuários de forma anônima ao governo. Nesse sentido, desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo decidiram que o sistema que usa dados dos celulares para medir a taxa de isolamento social na cidade não configura invasão de privacidade. Com essa decisão, as alegações de que o sistema violaria a intimidade e privacidade da população foram afastadas. O julgamento analisou inúmeros Mandados de Segurança impetrados por cidadãos que consideravam que a coleta das informações invadia a sua privacidade.

No âmbito federal, o Brasil, seguindo a dinâmica dos demais países do mundo, também criou o aplicativo Coronavírus Sus, que se utiliza da tecnologia da Google e da Apple. O usuário deve manifestar o seu consentimento para o tratamento de dados. Conforme indicado nas Políticas de Privacidade, o controlador é o ministério da Ministério da Saúde, que poderá tomar decisões referentes ao tratamento de dados, sem fazer qualquer identificação pessoal, a fim de preservar o anonimato do titular de dados. O usuário, então, consente ao controlador o tratamento da chave identificadora do telefone móvel, sendo esclarecido que a finalidade do tratamento de dados se volta para possibilitar a controladora identificar e entrar em contato com o Titular, para fins de relacionamento, que poderá informar que esteve em contato com o usuário que testou positivo para Covid.

* Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais — UEMG. Doutor e Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho — UNESP/Franca. Pós-Doutorado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande- FURG. Pós-graduado em Direito Público pela Escola Brasileira de Direito. Pesquisador Laboratório Americano de Estudos Constitucionais Comparados — LAECC/UFU. Advogado. Acesse o Lattes aqui

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